Batalha em San Domingo, de January Schudolski.(1797-1875).
FONTE: www.pordentrodaafrica.com
Perto de completar uma década, um
episódio trágico ocorrido na América Central, além de chocar o
mundo pela devastação causada, ocupou constantemente os espaços da mídia,
repercutindo também no Brasil e, principalmente na região valeparaibana. Trata-se do terremoto que arrasou a capital do Haiti, Porto Príncipe, causando
aproximadamente 200 mil mortos entre os haitianos, além de 20 brasileiros, sendo
18 militares do Exército Brasileiro, um alto funcionário da ONU, Luiz Carlos da
Costa e a médica fundadora da Pastoral da Criança Zilda Arns. Dos militares
vitimados, 10 pertenciam ao 5º BIL (Batalhão de Infantaria Leve) de Lorena, o
que estabelece, portanto, uma conexão entre o Vale do Paraíba e o Haiti, uma
vez que os mesmos integravam a força de paz da ONU, a MINUSTAH, “chefiada” pelo
Brasil. Como afirmado, a tragédia ocorrida no pais caribenho, foi destaque
nos diversos meios de comunicação na época e, para que nossos leitores conheçam um pouco
mais sobre o Haiti, devemos voltar no tempo e nas suas origens históricas.
O
Haiti e a República Dominicana ocupam a ilha chamada Hispaniola, nome dado pelo genovês Cristóvão Colombo quando este “descobriu”
a América em 1492, tomando posse em nome dos reis católicos da Espanha,
Fernando e Isabel. Cem anos mais tarde, a população autóctone havia sido
exterminada na ilha, bem como os astecas, maias e incas durante a conquista
empreendida pelos espanhóis. Em 1697, através do tratado de Rijswijk, a Espanha
cede à França a parte ocidental de Hispaniola, onde os franceses formam a colônia
de Saint-Domingue, cuja atividade econômica baseava-se no trabalho escravo de
negros importados da África. No século XVIII, produzindo açúcar, café e cacau,
a colônia de Saint-Domingue auferia mais lucros para a França do que o Quebec,
outra colônia francesa na América, esta no Canadá que a França perderia para a Inglaterra
em 1763 após a Guerra dos Setes Anos. Nesse contexto, a Europa vivia o chamado
século das luzes proporcionado pelos ideais do Iluminismo, influenciando mais
tarde a eclosão da Revolução Francesa, iniciada em 1789. A revolta que pôs fim
à monarquia na França com a execução de Luís XVI, repercutiu também nas
colônias do Ultramar e, em Saint-Domingue, em 1791, precisamente no dia 14 de
agosto os escravos se rebelam contra os senhores brancos matando-os juntamente
com seus familiares a golpes de machete. Liderados por Léger-Félicité Santhonax e François Dominique Toussaint–Louverture, os negros obtêm a vitória contra os últimos senhores, que
conseguem fugir da ilha, e comemoram a abolição da escravidão em 29 de agosto de
1793.
Entretanto, na Europa os governos monárquicos formam diversas coalizões para combater a França revolucionária, passando a atacar
também suas colônias. Sendo assim, a Espanha, a partir de sua possessão na
parte oriental da ilha (atual República Dominicana) e a Inglaterra ocupam
Saint-Domingue e passam a combater os ex-escravos. Mesmo em guerra civil, em
guerras contra as monarquias absolutas na Europa, a França consegue enviar tropas
para defender sua possessão, contra o avanço de espanhóis e ingleses. Diante da
situação, o ex-escravo que liderou a revolta negra, Toussaint-Louverture passa
a apoiar os franceses, chegando a Comandante-Chefe das forças conjuntas da
colônia e das francesas e, em 1801 com a vitória sobre os invasores torna-se
Governador Geral de Saint-Domingue, ocupando inclusive a parte espanhola da
ilha. Porém, com o golpe de 18 de Brumário, Napoleão Bonaparte consolida seu
poder na França e, num gesto que agrada os espanhóis, mas contraria os
ex-escravos do Caribe, declara nula a ocupação da parte oriental efetuada por
Toussaint, que em “reconhecimento” pelos serviços prestados, é considerado como
inimigo por Napoleão, que envia mais tropas, comandadas pelo cunhado
Charles Leclerc, com a missão de depor Toussaint do poder e restaurar a ordem
na colônia. Iniciando-se novos combates, Toussaint propõe trégua aos generais,
que quebrando o acordo o prendem e, em 1803 é executado na França. Embora, a
Revolução Francesa que “gerou” Napoleão fosse embalada, pelos ideais
iluministas de “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”, os mesmos não valiam para
os escravos das colônias e, diante da pretensão de Bonaparte de restabelecer a
escravidão na colônia, os negros revoltam-se novamente e, liderados por Jean-Jacques Dessalines consegue a vitória sobre as tropas francesas que capitulam
em novembro de 1803. Em janeiro de 1804, Dessalines declara a independência de
Saint-Domingue, agora com o nome de Haiti, nome de origem aruaque. Após
reocupar a parte oriental da ilha, a Espanha perde-a novamente quando em 1822,
o presidente haitiano Jean-Pierre Boyer conquista toda a ilha. No ano de 1844
uma revolta derruba Boyer e é proclamada a independência da República Dominicana.
Desse período em diante, o Haiti sempre viveu períodos de instabilidade
política e intervenções americanas. Entre 1915 e 1934, os Estados Unidos
ocuparam o Haiti, com o pretexto de defender interesses americanos.
Após um longo período de instabilidade política, assume a
chefia da nação o Coronel Paul Magloire, eleito em 1950. Este consegue desenvolver
a agricultura e a industrialização do Haiti, além de reconciliar-se com a República
Dominicana. Novo período, porém breve, de instabilidade política se segue e nas
eleições de 1957 vence o pleito o médico François Duvalier. Conhecido como Papa
Doc, Duvalier implanta uma ditadura feroz e, apoiada na sua guarda pessoal, os
tontons macoutes, inicia
violenta repressão com prisões torturas e execuções sumárias contra inimigos
políticos, principalmente esquerdistas. Inicialmente contrários á atitude do
Papa Doc, os EUA dariam todo apoio ao ditador haitiano após a Revolução Cubana.
Essa mudança de posição americana deve ser entendida no contexto da Guerra
Fria, pois após Cuba ter aderido à esfera de influência da União Soviética, o
governo americano, apesar de empunhar a
bandeira da democracia, prefere tolerar e até mesmo sustentar o regime
totalitário de Duvalier, do que correr o risco de um novo pais socialista no
Caribe. A partir de 1964, François Duvalier proclama-se presidente vitalício, e
com a oposição exterminada governa até a morte em 1971, sendo substituído pelo
filho Jean-Claude Duvalier, o Baby Doc. Também apoiado pela milícia extremista
criada pelo pai, o Baby Doc manteve a ferros o Haiti, até que a revolta popular
em 1986, o obrigou a renunciar e fugir para a França, uma vez que tinha perdido
o apoio americano. Assume o poder provisoriamente o General Henri Namphy,
iniciando novo período de perturbações políticas. Nas eleições presidenciais de
dezembro de 1990, vence o então padre salesiano Jean-Bertrand Aristide, deposto
em setembro de 1991 em um golpe de Estado chefiado pelo General Rauol Cedras.
Em apoio a Aristide a organização dos Estados Americanos (OEA), a ONU e os EUA
impõe sanções econômicas sobre o Haiti. Depois de negociações infrutíferas, a ONU decreta o bloqueio total ao Haiti
e autoriza o governo americano a liderar uma força multinacional para invadir a
ilha e reempossar Aristide, o que ocorre em setembro de 1994. O embargo
econômico, no entanto, arrasa a economia do país, contribuindo para aumentar as
convulsões internas. Após esse período, o Haiti não conseguiu reerguer-se
economicamente e, nas eleições de 2000 vencidas por Aristide, as suspeitas de
fraudes aumentaram, elevando as tensões políticas que iriam explodir em fevereiro
de 2004. Com o retorno de Aristide em 1994, foram desmanteladas as Forças
Armadas locais, para prevenirem futuros golpes, mas cada líder acabou por criar
grupos armados diversos que exigiam a
renúncia do ex-padre em 2004. E foram tais grupos, alguns inspirados nos
antigos tontons macoutes que iniciaram a revolta contra Aristide, que esperando
novamente apoio americano prometeu resistir na capital haitiana. Realmente um
helicóptero militar dos EUA aterrisou em Porto Príncipe , mas
somente para retirar Aristide contra sua vontade e enviá-lo para a África do
Sul, onde conseguiu asilo político.
Sendo assim, para restaurar a ordem e pacificar o Haiti e
desarmar os grupos paramilitares, chamados de gangues, a ONU decide enviar para
o país caribenho uma missão de paz. Com duas “batatas quentes” na mão para
resolver no Oriente Médio (Iraque e Afeganistão), os EUA abrem mão de chefiar a
missão. Para comandar então a Missão das Nações Unidas para a Estabilização no
Haiti (a MINUSTAH) a ONU encarrega o Brasil que designa o General Augusto
Heleno Ribeiro Pereira, do Exército como chefe da força de paz em conjunto com
outros países. Com o efetivo de 1.300 homens, o Exército Brasileiro, dentro da
Minustah, aos poucos consegue dominar os grupos armados do Haiti e prendendo
seus lideres. Para a sociedade haitiana, alguns entendem que a missão da ONU,
de fato trará prosperidade para a ilha, para outros, no entanto, a Minustah é meramente
uma tropa de ocupação que teria freado a revolta popular. O fato, porém,
principalmente com a presença brasileira prestando serviços essenciais como
educação, higiene, saúde e cidadania, é que tentava-se combater a externa
miséria em que vivem os haitianos, causado pelos governos do Papa Doc e seu
filho e agravadas pelo bloqueio econômico dos anos 90. Como conseqüência, o
Haiti tornou-se o país mais pobre e miserável da América, mais pobre até do que
Cuba que ainda sofre com o embargo americano.
Contudo, todo o esforço empreendido pela missão da ONU,
com destaque para o Exército Brasileiro, alcançando considerável índice na
melhoria das condições dos haitianos, foi arrasado no dia 12 de
janeiro de 2010, com o terremoto citado no início deste texto. Atingindo 7,3
graus na escala Richter, o tremor arrasou a capital, como já mencionado. Até
mesmo, o presidente haitiano René Preval perdeu casa e palácio de governo,
destruídos pelo fenômeno. Os militares vitimados com a tragédia no Haiti eram:
os saldados Rodrigo Augusto da Silva, de 24 anos; Antonio José Anacleto, 23
anos; Tiago Anaya Detimermani, também de 23 anos e Felipe Gonçalves Júlio, de
22 anos. Perderam a vida também os cabos Douglas Pedrotti Neckel, 24 anos,
Washington Luis de Souza Seraphin, 23 anos; os sargentos Leonardo de Castro
Carvalho, 29 anos, Davi Ramos de Lima, 37 anos e Rodrigo de Souza Lima, 23 anos
e o Tenente Bruno Ribeiro Mário de 26 anos. Mencionamos somente os que
pertenciam ao batalhão de Lorena. Os corpos foram trazidos para o Brasil e homenageados
com honras militares em Brasília e Lorena. O autor do presente artigo conheceu
brevemente o soldado Tiago Anaya na casa de seu sogro no Embaú, seis meses
antes de embarcar para o Haiti. O jovem Tiago estava com uma grande expectativa
para a missão que iria efetuar e, tanto ele quanto a esposa planejavam o futuro
do casal quando completasse o seu período no Caribe. A família aguardava o seu
retorno ansiosamente, previsto para o dia 16 de janeiro de 2010 e programava no
Embaú e no Embauzinho, onde residem os pais, grande festividade pela missão
comprida. O soldado Anaya, como era conhecido no 5º BIL, de Lorena, completou
sua missão no Haiti. Infelizmente não conseguiu realizar seus sonhos de
felicidade e prosperidade no Brasil, interrompidos brutalmente pela fúria da
natureza. Até a próxima.
Eddy
Carlos.
Dicas para consultas.
ARRUDA e Piletti, José
Jobson e Nelson. Toda a História.
Editora Ática, São Paulo, 1995.
FOLHA de São Paulo. Atlas da História do Mundo. Publifolha.
São Paulo, 1995.
MARQUESE, Rafael de
Bivar. Feitores do Corpo, Missionários
da Mente. Senhores, letrados e o controle de escravos nas Américas (1660-1860).
Companhia das Letras. São Paulo, 2004.
PRONAP. Coleção SIBRAC. Volume 4. Nova Central
Editora. São Paulo, 1995.